Você já parou para pensar que em pleno 2020, o ano da pandemia, muitas empresas estão, nesse momento, fazendo seus planejamentos estratégicos para 2021 da mesma forma que aprendemos há quase meio século?
Se você já leu “Admirável mundo novo” (1932), certamente lembrará que a consagrada obra de Aldous Huxley descreve uma sociedade que vive em estado de quase transe, dividida em castas com funções definidas nas quais não há qualquer traço de individualidade ou de emoções. Ao menor sinal de estresse, ansiedade ou emoção, os membros dessa rígida sociedade se medicam com um psicotrópico chamado “Soma”, que rapidamente os põem de volta a um estado comportamental de autômatos programados.
Na vida real, o Brasil consome 56,6 milhões de caixas de calmantes e soníferos. Na pandemia, esse número cresceu 20%. Volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade! Como uma nova caixa de Pandora ou uma boneca matrioska, encontramos um problema no cerne de outro, ou no interior do que parecia ser uma solução. Como uma pandemia dentro da pandemia.
Porque 2020 é marcado pela pandemia do COVID-19 que potencializou todas as questões de transformação que vinham ocorrendo. Percebe-se claramente que simplesmente não havia planejamento estratégico preparado para lidar com o que aconteceu, bem como não existiam planos de contingência capazes de lidar com a dimensão dos danos causados às vidas das pessoas e, consequentemente, à economia.
As empresas deveriam acordar para as profundas mudanças de mindset exigidos pela baixíssima previsibilidade, em que ser eficiente é menos estratégico do que ser criativo. Por que em um ambiente em que a única certeza é a mudança, compreender que a falha é uma possibilidade iminente e que a capacidade de adaptação e aprendizado irão contribuir muito mais para o sucesso do que a estrutura e os processos.
Muito me espanta, no entanto, que diversas empresas já tenham tomado seu “psicotrópico” e voltado a conduzir processos de planejamento estratégico como sempre o fizeram, criando planilhas para prever como será cada mês do próximo ano ou mais, abrindo linha a linha todos os parâmetros de previsão e comportamento de seus negócios. As empresas mais organizadas iniciaram esse processo em outubro, outros já têm agendas marcadas para este mês de novembro. São inúmeras versões que se atualizam a cada semana e diversos fóruns de aprovação.
Não é de hoje que usamos a expressão “mundo VUCA” para se referir a uma realidade que é marcada pela volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade (Volatility, Uncertainty, Complexity and Ambiguity em inglês). Para ser mais exato, a expressão foi cunhada na década de 90 para explicar o contexto global pós-guerra fria. Desde então, o mercado empresarial vem sofrendo profundas transformações com o rápido avanço tecnológico, amplo acesso à informação e empoderamento do consumidor em relação às marcas.
Na nova Economia, empresas tradicionais têm sido desafiadas todos os dias, e modelos de negócios já vinham sendo revisados para se adequar a esse ambiente de baixíssima previsibilidade, no qual o mindset da eficiência perde espaço para a criatividade. Não à toa, o tema das inteligências socioemocionais, ou soft skills como são amplamente conhecidas, ganhou força nos últimos anos.
O Cérebro humano adora linhas retas e padrões: buscamos compreender os fenômenos que nos cercam relacionando informações, mas também esperamos resultados lineares. Quando se trata de gestão de negócios, não é diferente. Estamos a todo momento em busca dessa linearidade nas tomadas de decisão. Queremos elementos que nos passem segurança conforme as decisões tomadas e, devido a isto, pensamos diversas decisões de negócio com um pensamento linear mesmo ante a fenômenos complexos e não lineares.
A distopia da década de 1930 refletia um desejo presente em muitos ambientes de negócio: tomar uma decisão racional para a empresa sem deixar que emoções individuais influenciassem o julgamento dos fatos.
Nada poderia ser menos verdadeiro no cotidiano. Não digo isto apenas por minha experiência pessoal. Para aprofundamento na questão, recomendo o livro “Strategy Beyond the Hockey Stick” — leitura sumamente interessante em que os autores apontam um problema fundamental de todo o planejamento estratégico: O ASPECTO SOCIAL DA ESTRATÉGIA. Basicamente, segundo os autores do livro, as estratégias falham devido a 3 aspectos fundamentais:
As implicações práticas estão nos dados levantados no trabalho que resultou em livro, mais de 2000 empresas do mundo todo foram analisadas e a conclusão é de que as chances de uma empresa, cujo resultado operacional, está na mediana da distribuição ser bem sucedida com sua estratégia e alcançar um lugar entre os top performances é de apenas 8%. A realidade é dura e poderíamos falar de outros dados que corroboram com a realidade de que estratégias sejam muitas vezes mais propensas à falha do que ao êxito.
No entanto, historicamente aprendemos a gerir negócios de forma muito sistemática. Herdamos a mentalidade fordista de busca pela eficiência e criamos inúmeros mecanismos para controle de riscos, otimização de custos e ganhos de escala. E apesar dessa fórmula já ter deixado de funcionar há alguns anos, seguimos o mesmo playbook de forma quase automática.
Um exemplo neste tema que sempre menciono, é o caso da Kraft Heinz, que se mostrou um grande fracasso no ano passado, fato reconhecido publicamente por Jorge Paulo Leman quando afirmou: “o sonho grande da Kraft heinz acabou”. Curiosamente, Leman é um executivo brilhante que realizou feitos incríveis, seguindo com disciplina princípios que garantiram o sucesso de grandes empresas por todo o mundo. Infelizmente, não funcionou no caso da Kraft Heinz que, no final de fevereiro do último ano viu suas as ações desmoronarem 26% no espaço de apenas um dia!
A empresa já havia perdido 60% do seu valor de mercado nos dois anos anteriores, mas então veio o golpe súbito. O feedback foi claro: houve tempo suficiente de se reinventar, mas isto não aconteceu. Demasiado enfoque foi dado ao corte de custos, quando o desafio de seu modelo campeão deveria ter sido o foco para que se pudesse encontrar novas formas de competir. E esse é o maior risco do mindset da eficiência: é um mindset que limita a criatividade e a inovação, uma vez que estas necessitem de um ambiente caótico para que possam se desenvolver.
No último dia 20 de outubro, saiu o Future Jobs Survey 2020 e com ele, um novo ranking de skills que predominarão no futuro do trabalho. Apenas 3 dos 15 skills são relacionados a competências técnicas, e todos os demais são relacionados a competências socioemocionais. O Survey demonstra a necessidade por profissionais que sejam capazes de pensar criticamente para resolver problemas complexos, e que ao mesmo tempo possam lidar com suas emoções, tornando-se mais resilientes e flexíveis.
O fato é que o futuro exige de nós coragem para tomarmos decisões e nos arriscarmos em situações nas quais o pensamento linear não seja capaz de fornecer a segurança desejada para a tomada de decisão e, por isso, temos que ser muito mais criativos e menos processuais. O pensamento estratégico, portanto, é justamente no que sua empresa deveria empregar energia.
O pensamento lógico, sistemático e convergente, predomina no planejamento estratégico. Atuamos de forma a avaliar e ponderar alternativas que estão dadas e a prescrever a alternativa que melhor atende a critérios que serão estabelecidos no processo de tomada de decisão. Esse é um processo reativo: nele lidamos com as alternativas impostas pelo ambiente, ao invés de construirmos novas alternativas.
O pensamento estratégico, por outro lado, é um processo criativo que valoriza a oportunidade de imaginar novos e diferentes futuros que podem levar a mudanças drástica nos destinos das empresas. Esse processo de tomada de decisão é orientado a produzir alternativas antes de se iniciar um processo de definição e convergência e, portanto, se torna muito mais custoso do ponto de vista cognitivo.
A essência do meu trabalho na Organica está no desafio aos modelos campeões, o que só é possível a partir de um mindset que priorize o questionamento e a formulação de alternativas. Não existem fórmulas mágicas na condução desses processos. É preciso guiar-se pela escuta ativa e autoconhecimento, habilidades cuja combinação permitirá que a tomada de decisões ocorra de forma a aceitar a complexidade e o novo.
Negócios de grande potencial surgem a todo tempo, mas nem todos alcançam sucesso. O caso recente do serviço de vídeos Quibi exemplifica isto: há dois anos atrás, o Quibi era uma grande aposta que captou mais de USD 2bi. Hoje, encerra suas atividades após apenas 6 meses de operações.
Assim, compreender que a falha é uma possibilidade iminente e que não há planejamento ou recurso que possa garantir o sucesso total, é fundamental. Por outro lado, um ambiente que compreende e valoriza a importância das emoções, e constrói alternativas—ao invés de simplesmente reagir às possibilidades impostas pelo cenário externo—tem muito mais chances de gerar êxitos.
Originalmente publicado em:
https://www.linkedin.com/pulse/admir%C3%A1vel-planejamento-novo-felipe-ladislau/